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segunda-feira, 2 de julho de 2012

Relevância.


Relevância.


Acordei. Não levantei. Não pensei. Não abri os olhos. Só acordei.
Estava difícil de distinguir o que era sonho e o que não era. Abri os olhos.
Tudo estava irritantemente fora do lugar. O pufe estava mais pra direita; a televisão, sobrenaturalmente, envergada para a esquerda; os óculos estavam um pouco mais a frente do abajur do que de costume... Ah, sim! Estiquei a mão fazendo o mínimo de esforço possível, agarrei os óculos, fechei os olhos, e coloquei-os.
Abri os olhos. Tudo estava irritantemente em seu devido lugar. O pufe em sua posição normal; a televisão, naturalmente, pregada na parede; os óculos em meu rosto.
Levantei. Fui até o banheiro. Não entrei. Parado à porta percebi que não havia mais papel higiênico. Decidi apenas lavar o rosto.
Lavei o rosto. Parei à frente do espelho. Contemplei meu semblante calvo. Desisti da apreciação.
Caminhei pelo longo corredor até a sala. Desejei um bom-dia à minha mulher. Menti. Sentei-me à mesa. Notei a ausência da manteiga. Decidi poupar-me do esforço de perguntar o porquê de sua falta. Decidi, também, poupar-me do esforço de ouvir uma resposta óbvia e mal construída.
Terminei o café. Deitei no sofá. Liguei a televisão. Ouvi em silêncio as notícias do primeiro bloco do jornal matinal. Tudo muito relevante. Minha esposa se juntou a mim assim que o comercial nos deixou. A ouvi tagarelar sobre o seu dia anterior. Tudo muito relevante.
Percebi que seu nobre monólogo tinha chegado ao fim. Dirigi-me até o quarto. Não entrei. Notei que ela vinha atrás de mim. Dirigi-me ao banheiro. Tomei banho.
Decidi me deitar. Não iria dormir, apenas descansar. Encontrei-me numa profunda análise sobre o jogo de quarta-feira. Tudo muito relevante. Minha mulher entrou no quarto. Começou a guardar as roupas no armário. Mais irritante impossível. Deixou-me sozinho alguns minutos depois. Achei melhor pegar no sono antes que ela voltasse. Dormi.
Acordei com um raio de sol batendo em meu rosto. Abri os olhos e me encontrei no cubículo semi-escuro de sempre. Devido à claridade daquele único raio de sol que transpassava pela janela com grades pude ver um camundongo passando por mim.
Ainda bem. Tudo tinha sido apenas um sonho.

10 comentários:

Geraldo Maciel disse...

Há inúmeras narrativas por aí em que as pessoas acham a explicação mais fácil pra terminar: era só um sonho.
Nunca vi ninguém usar o sonho tão bem quanto nesse texto.
Impressione-me mais, Gabi! Preciso de mais textos fantásticos como esse.

Gabriela Migoto disse...

Chupa essa, Lewis Carroll.

Velhinha de Taubaté disse...

Quando eu crescer eu quero ser assim.

Carolina Soares disse...

Gabi! Como disse sabiamente uma certa Carolina Lobo: Foda. Muito Foda. É maravilhoso, senti um incômodo que só havia sentido nas aulas da Carol. "Tudo tinha sido apenas um sonho." perfeito!

Larissa Cristine disse...

UAU!surpreendentemente foda...caralho!o final...surpreendeu...estou chocada com esse texto...

Carol Carolina disse...

Foda. Muito foda. E mais: Me lembrou de Vanilla Sky (com mais estilo e sarcasmo), Waking Life (com mais ironias finas, como soh vc sabe fazer), com a linguagem cortante de Rubem Fonseca, sem a violência física que ele tanto preza, mas com a violência psicológica, que vc tanto preza (se não leu, leia Passeio Noturno). E o detalhe: Vc tem um estilo único, muito mais agressivo, pungente e chocante do que os jah mencionados. Lembre-se de mim qd for homenageada da FLIP daqui a uns anos, hein!?!?!?

Gabriela Migoto disse...

Poxa, vocês me deixam emocionada !

INQUIETAÇÕES DE HERMANO MELO disse...

Se o Geraldo apenas tivesse indicado o texto, sem contextualizá-lo eu perguntaria: "caramba ! quem escreveu isso?"

Unknown disse...

Muito bom Gabi. Nos surpreenda mais com seus textos incríveis!

Unknown disse...

escreva mais, Gabi.

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